O sol estava lá, na manhã. E ela, acordada, desperta, morna. Olhou pela janela da sala puxando a cortina devagarzinho, espiando, espiando. Via a rua, além do asfalto as árvores balançando suas folhas assim. E uma brisa entrando pela fresta entre os vidros, o ar vindo, soprando. Encostou seu rosto na janela, sentindo o movimento vento, ventinho. Quando se afastou viu que tinha ficado a marca de suas bochechas, talvez suadas um pouco, já estava calor. Enquanto olhava a janela, agora com menos atenção, passou a ouvir, sintonizou o ouvido lá na cozinha, a mãe já entretida, falando, fogão, panelas, a carne está linda, falando sempre. Com quem? E ela acordada, já. Passou uma senhora com carrinho de feira. Ihhhh. Tem feira. Mãe? Você vai na feira? Não respondeu pois não ouviu, falava já tanto, provavelmente com a Leo, a empregada.
A feira.
Ela pensava bem baixinho dentro da cabeça: Ninguém nem vai perceber se eu for só aqui no portão, só para ver o dia, eu acordei cedo.
A porta da sala, ela abriu sem fazer barulho. O quintal. A rua logo do outro lado da mureta. Olhou por cima de tudo. As barracas lá na outra quadra, no lá, tão assim que até que perto. As lonas com o vento, azuis, verdes, laranjas, e tanto coisa em baixo, um colorido, agitado, gritos, olha lá minha senhora, tá barato, é feira, é feira. Uma vontade de passear, só um pouco. Ninguém nem vai saber.
Então, num ímpeto, saiu de casa encostando o portão como quem já volta. Devagar. Andou meia quadra, teria que atravessar a rua. Parou no meio fio, olhou para os dois lados para ver se vinha carros e tinha um vindo e agora que estava na rua, assim, só, sem nenhum braço para se apertar a mão conhecida por perto, respirava mas não enchia direito o peito. A barriga ficava até um pouco dura. E ela mais pequena do que todos que passavam e logo saberiam: criança! Boba, sentia medo. O coração forte dentro do corpo, vibrando tudo. Não, não tem medo, não. Atravessou decidida quando o único carro que via vindo estava lá longe, andou até a esquina. Parou novamente.
O sol e o azul. Tão bonito. Tão azul, azul, ul, por dentro e por fora do corpo seu. Aquele barulho. Barulheira. As grandes todas andando de carrinhos cheios de colorido, uns mais que outros. Respira, respira, respira.
Parou ali no começo de tudo, olhando o mundo de barracas para lá. Andava agora novamente devagar, mas chegando, chegando. Não acredito. Não posso acreditar. Olha o tamanho da gaiola do moço, ali. E não tinha ninguém para dividir aquele deslumbramento. Como fazem barulho. Estão vivos. E ficou com o rosto grudado na gaiola, cheia e cheia de aves pequenas e amarelas. Moço? Quanto é o pintinho? Olhou para o chão, seus sapatos, uma vontade dentro assim do peito, feliz, não poderia deixar para lá. Queria, e muito. Olhou novamente para o moço, e falou rápido, decidida: Então espera aí.
Correu para casa, uma quadra, rápido, rápido, tum-tum-tum, o coraçãozinho vá! Atravessou a rua, primeira quadra, segunda quadra tum-tum, tum. Abriu portazinho, quintal, porta da sala, silêncio, shiiiiiiii!! atravessou a sala, e parou, de repente. Shiiiiiiiii, pensava consigo mesma, como detetive, shiiiiiiiii. Concentrou-se em ouvir, a mãe continuava na cozinha, barulho de louças batendo, devia estar lavando pratos e panelas, nem se deu conta que ela saiu. Ainda na ponta dos pés, de escondida, então foi na caixa de costura velha da mamãe, aquela forrada com pano amarelo, fica no fundo da estante, atrás da fruteira, onde sempre tem. Abriu sem fazer quase nem um ruído. Olhou dentro da caixa. Sorriu por dentro. Moeda, moeda, moeda.
Voltou tudo com a mesma habilidade. Refez todos os mesmo passos, ágil mas cuidadosa, sentia-se tão habilidosa, novamente a caixa para o funda da estante, o trinco da porta da sala, a mureta, o sol, o vento, asfalto, asfalto, atravessou a rua agora que estava calminha sem carro, a gaiola. Logo chegou. Moço? Dá pra comprar o pintinho?
O moço cuidadosamente passou aquele bolo de moedas da menina para sua mão e rapidamente contou quanto tinha. Abriu a gaiola e disse escolhe. Então ela sorriu. Os olhos ficaram até pequeninos, brilhantes. Felicidade é ter um pintinho. Aquele ali, que tá no canto aqui, esse, esse. Moço? Brigado.
Tchau.
E correu, com a mão feito um ninho, os dedos entrelaçados se esforçando, tentando ser maiores. Correu. Uma bola agora parada dentro do estômago e uma amarração no peito, no coração. Estranho de ar sufoco. Correu, para o lado o outro, na direção oposta de casa, tum-tum, ah! A pracinha. Correu para lá e parou embaixo da árvore. Agachou bem miudinha.
Piu ele fez. Amarelo feito pintinho. Piu! Ela subiu suas mãos à altura do rosto. Olhou nos olhos, o bicho. Aí. Um aperto em tudo. Calma bichinho, calma. Eu vou cuidar de você. Eu vou cuidar. Você será amigo. Meu melhor amigo.
Cumplicidade é ter um pintinho.
A sombra da árvore da praça. O calor de sombra ainda melhor, é. Alisava o macio de pelo-pena-pelúcia. Alisava o macio. A boca seca. Os fios de mato encostando-se à canela. Um olhar para além da mão e do bicho. Por segurança. Tudo bem, lá na frente só as pernas que sentadas no banco da frente com cachorro.
Tudo bem.
Pintinho!
Você ta com medo meu amigo? Você ta com medo de mim? Você não me conhece, mas vai gostar. Seremos bons.
E juntou o ninho-mão com o peito. A camiseta era boa para ele, bem mole, de tecido que não pinica, você vai gostar de encostar aqui um pouco meu amigo. Algodão lavado, lavado, gostoso. Eu vou te por aqui pra ver como é gostoso.
Olhou rápido para o lado vulto. Alguém. Alguém lembra casa. Alarme de casa, dentro da cabeça. Agora antes que briga, vamos!
Vamos pintinho!
Correu. Logo se chega, chegou. Abriu o portão com a cabeça para não perturbar a posição acomodada do amigo. Casa. Ah! Essa é a casa, ta? Você gosta? Então você vai ser feliz!
Quando abriu a porta já sabia que não seria o mesmo silêncio de quando saiu. Preparou-se e olhando a vontade do sol logo adivinhou que muito mais tempo tinha passado. Virou a maçaneta e pôs primeiro a cara para dentro mas nem deu tempo de nada e Meniiiiiiiiiina!!! Aonde você estava!!!!!! Estão todos te procurando!!!!! Como?!?! COOOOOmo você sai assim sem avisar?
Pintinho...
O que é isso aí? Aonde você arrumou isso! Você quase nos deixou loucas, já liguei pro seu pai, ele estava no meio de uma reunião, todo mundo desesperado, Léeeo, ela chegou. Aonde você foi, com ordem de quem? Vá! Vá pro quarto! E não deixa o bicho fazer sujeira por lá, nem assustar seu irmão.
Sentou na cama. Olhou para baixo e temerosa o pois em cima da cama, tão de novo amarelo o bicho, a cama com colcha de retalhos feita pela tia. Acariciando a cabeça macia ouvia a mãe nervosa falando com a Leo e depois no telefone, o pai iria brigar.
Ficou um pouco de tempo nesse estado de olhos parados, com quase vontade de chorar apertando o peito, um susto, a mãe brava, nervosa, o pai também, ainda mais quando chegasse em casa. Sentia-se até mole, se ficasse assim parada com o bichinho talvez até dormia mas é melhor arrumar logo um canto para ele, é melhor fazer isso logo.
No armário, olhando o que tinha rapidamente decidiu-se por pegar a caixa do tênis do natal e com o próprio papel que veio nela fez um amassado que não ficasse duro. Bom. Bom? Mais ou menos bom. Então correu lá fora, mãe? Tem resto de pano? A mãe ainda nervosa, com aquele olhar de raiva que tinha às vezes. Pode pegar? Ta!! Ah! A mãe mesmo brava era boa. Tantos paninhos que escolheu pela cor, verde, amarelo e rosa. Um preto também, pode mãe? Ta!!
Voltou para o quarto. Já estava feliz de novo agora sem moderações. Voltou... olhou para a cama, toda a colcha vazia... Cadê? Amigo? Piu! Piu? Cadê? Embaixo da cama!!! Como foi parar aí em abaixo amigo?! Você caiu? Você se machucou? Ai meu deus!! Ai meu santo!! Você ta machucado?? Por que também foi andar pela cama? Eu falei para você ficar bem parado. Mas desculpa! Ai. Bem. Passou? Foi só o susto... Agora vou te por na cama mais bonita do mundo, porque agora você tem uma só pra você, como eu. Essa aqui é a minha, ta? E essa é a sua. E aí você não cai mais, se não machuca.
Pôs o bicho. E os trapinhos lá, coloridos. E o cheiro de ainda manhã de sol na casa toda, junto com tudo.
Deitou na cama e colocou a caminha ao seu lado. Tirou seu tênis quente e ficou fazendo carinho de novo na cabeça de ave.
Bico. Boca. Deu um beijo bem fraquinho, só aqui em cima, para não amassa-lo.
Aí deu fome. Mãe? A gente vai almoçar? Vou já então! Vou deixar o pintinho na cama dele, em cima da minha! Mas primeiro vou dar água para ele.
Na cozinha a mesa arrumada já a esperava. Seu prato, seu lugar de sempre, a mesma cadeira, e a tigela com salada, outra com carne e ainda arroz. Um cheiro gostoso. A mãe não. A mãe estava brava, bem brava, daquele jeito que não olha para o nosso rosto. E também não fala. Mãe? Desculpa, é que eu queria muito um pintinho, e estava tendo feira e.... Coma menina, coma antes que esfrie. Quer arroz?
A mãe não queria nem conversar.
...
Voltou para o quarto.
Feliz. Não importava, por hora, tanto o que passava lá fora. Felicidade é ter um pintinho.
2007