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sexta-feira, 27 de junho de 2014

[trecho de] Tabacaria

[...]
    Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
[...]

Álvaro de Campos
15 de janeiro de 1928

Ralo

água, transparente,

elétrico, chuveiro,

enchendo o cérebro, e penso: poesia é modo de, alerta, tudo aceso, tudo ligado-desligado, estando só.

as costas oleosas, a mão já seca de tanto sabão

é segredo.



sexta-feira, 6 de junho de 2014

Céu

A criança olha
Para o céu azul.
Levanta a mãozinha,
quer tocar o céu.

Não sente a criança
Que o céu é ilusão:
crê que não o alcança,
Quando o tem na mão.

Manuel Bandeira - Belo Belo

Belo Belo

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo da noite.

Belo belo belo
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra dá só com trabalho.

Ás  dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

Manuel Bandeira - Lira dos Cinquent'anos


Trecho de "Na Rua Mário de Andrade"

[...]

Ele, Mário, me diz: é preciso
flanar...
Eu digo a ele - ó Mário,
era o que eu ia te falar

É preciso flanar em ruas
- os passos levando sempre
para nenhum lugar

E Mário me diz: - Poeta,
nenhum-lugar é o melhor
lugar de um poeta chegar

[...]

Manoel de Barros

José (Drummond)

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora José?

[...]

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Decoro

Eles a querem.
Ela, decente, sorri.
Quanta decência.
Como ela é decente.
 que ainda está em jogo.
o jogo.
ridículo
- é o único que ela tem -
mas ela gosta, é boazinha, é indecente, sabe se comportar.