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quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Pecado Original

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém escrever,
A verdadeira história da Humanidade.

O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, é só o mundo;
O  que não há somos nós, e a verdade está aí.

Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.

Que é daquela nossa verdade - o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza - o propósito à mesa de depois?

Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sôbre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.

Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?

Quantos Césares fui!

Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão -
Meu Deus! meu Deus! meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!

Álvaro de Campos
7-12-1933

Trapo

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser suscetível às mudanças da luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-se o céu azul e o sol visível,
Névoa, chuva, escuros - isso eu tenho em mim.

Hoje quero só sossêgo.
Até amaria o lar, desde que não o tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossêgo.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

[...]

O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos

10-9-1930