"Vinha a noite aos poucos e eu continuava a pensar, acariciando cismas, excitando recordações, rememorando minha infância, as fisionomias que ela viu e os fatos que presenciou."
Recordações do escrivão Isaías Caminha, 1917
Lima Barreto
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quarta-feira, 25 de outubro de 2017
Um pé de milho - Rubem Braga
Os americanos, através do radar,
entraram em contato com a Lua, o que não deixa de ser emocionante. Mas o fato
mais importante da semana aconteceu com o meu pé de milho. Aconteceu que, no
meu quintal, em um monte de terra trazida pelo jardineiro, nasceu alguma coisa
que podia ser um pé de capim - mas descobri que era um pé de milho.
Transplantei-o para o exíguo canteiro da casa. Secaram as pequenas folhas;
pensei que fosse morrer. Mas ele reagiu. Quando estava do tamanho de um palmo,
veio um amigo e declarou desdenhosamente que aquilo era capim. Quando estava
com dois palmos, veio um outro amigo e afirmou que era cana.
Sou um ignorante, um pobre homem da cidade. Mas eu tinha razão. Ele cresceu, está com dois metros, lança suas folhas além do muro e é um esplêndido pé de milho. Já viu o leitor um pé de milho? Eu nunca tinha visto. Tinha visto centenas de milharais - mas é diferente.
Um pé de milho sozinho, em um canteiro espremido, junto do portão, numa esquina de rua - não é um número numa lavoura, é um ser vivo e independente. Suas raízes roxas se agarram no chão e suas folhas longas e verdes nunca estão imóveis. Detesto comparações surrealistas - mas na lógica de seu crescimento, tal como vi numa noite de luar, o pé de milho parecia um cavalo empinado, de crinas ao vento e em outra madrugada, parecia um galo cantando.
Anteontem aconteceu o que era inevitável, mas que nos encantou como se fosse inesperado: meu pé de milho pendoou. Há muitas flores lindas no mundo, e a flor de milho não será a mais linda. Mas aquele pendão firme, vertical, beijado pelo vento do mar, veio enriquecer nosso canteirinho vulgar com uma força e uma alegria que me fazem bem. É alguma coisa que se afirma com ímpeto e certeza. Meu pé de milho é um belo gesto da terra. Eu não sou mais um medíocre homem que vive atrás de uma chata máquina de escrever: sou um rico lavrador da rua Júlio de Castilhos.
Dezembro, 1945
Sou um ignorante, um pobre homem da cidade. Mas eu tinha razão. Ele cresceu, está com dois metros, lança suas folhas além do muro e é um esplêndido pé de milho. Já viu o leitor um pé de milho? Eu nunca tinha visto. Tinha visto centenas de milharais - mas é diferente.
Um pé de milho sozinho, em um canteiro espremido, junto do portão, numa esquina de rua - não é um número numa lavoura, é um ser vivo e independente. Suas raízes roxas se agarram no chão e suas folhas longas e verdes nunca estão imóveis. Detesto comparações surrealistas - mas na lógica de seu crescimento, tal como vi numa noite de luar, o pé de milho parecia um cavalo empinado, de crinas ao vento e em outra madrugada, parecia um galo cantando.
Anteontem aconteceu o que era inevitável, mas que nos encantou como se fosse inesperado: meu pé de milho pendoou. Há muitas flores lindas no mundo, e a flor de milho não será a mais linda. Mas aquele pendão firme, vertical, beijado pelo vento do mar, veio enriquecer nosso canteirinho vulgar com uma força e uma alegria que me fazem bem. É alguma coisa que se afirma com ímpeto e certeza. Meu pé de milho é um belo gesto da terra. Eu não sou mais um medíocre homem que vive atrás de uma chata máquina de escrever: sou um rico lavrador da rua Júlio de Castilhos.
Dezembro, 1945
Rubem Braga
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quarta-feira, 4 de outubro de 2017
Vida social das coisas
"As botinas, os chapéus petulantes, o linho das roupas brancas, as gravatas ligeiras, pareciam dizer-me: "Veste-me, ó idiota! nós somos a civilização, a honestidade, a consideração, a beleza e o saber. Sem nós não há nada disso; nós somos, além de tudo, a majestade e o domínio!"
Recordações do escrivão Isaías Caminha - 1917
Recordações do escrivão Isaías Caminha - 1917
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Dos desafios de ser doutor no início do século XX
"Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor..."
"Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polimórficos... Era um pallium [manto que cobre os ombros], era alguma coisa como clâmide sagrada, tecida com um fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro os elementos, os maus olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas da chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-entanha antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor? Era sobre-humano!..." (p.75)
"Houve ocasião em que ele exprobrou essa nossa mania de empregos e doutorado, citando os ingleses e os americanos. "Todo mundo quer ser doutor..." Corei indignado e respondi com alguma lógica, que me era impossível romper com ela; se os fortes e aparentados, os relacionados para a formatura apelavam, como havia eu, mesquinho, semiaceito, de fazer exceção?" (p. 120)
Recordações do escrivão Isaías Caminha - 1917
"Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polimórficos... Era um pallium [manto que cobre os ombros], era alguma coisa como clâmide sagrada, tecida com um fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro os elementos, os maus olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas da chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-entanha antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor? Era sobre-humano!..." (p.75)
"Houve ocasião em que ele exprobrou essa nossa mania de empregos e doutorado, citando os ingleses e os americanos. "Todo mundo quer ser doutor..." Corei indignado e respondi com alguma lógica, que me era impossível romper com ela; se os fortes e aparentados, os relacionados para a formatura apelavam, como havia eu, mesquinho, semiaceito, de fazer exceção?" (p. 120)
Recordações do escrivão Isaías Caminha - 1917
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segunda-feira, 2 de outubro de 2017
Eu confesso, tu confessas, nós confessamos
“confessam-se os crimes, os pecados, os pensamentos e os desejos, confessam-se passado e sonhos, confessa-se a infância; confessam-se as próprias doenças e misérias; emprega-se a maior exatidão para dizer o mais difícil de ser dito; confessa-se em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao médico, àqueles a quem se ama; fazem-se a si próprios, no prazer e na dor, confissões impossíveis de confiar a outrem, com o que se produzem livros. Confessa-se – ou se é forçado a confessar. [...] O homem, no Ocidente, tornou-se um animal confidente”
(Foucault, 1976, História da Sexualidade, capítulo
3).
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