"Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor..."
"Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários, polimórficos... Era um pallium [manto que cobre os ombros], era alguma coisa como clâmide sagrada, tecida com um fio tênue e quase imponderável, mas a cujo encontro os elementos, os maus olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas da chuva afastar-se-iam transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-entanha antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças, pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está, doutor? Era sobre-humano!..." (p.75)
"Houve ocasião em que ele exprobrou essa nossa mania de empregos e doutorado, citando os ingleses e os americanos. "Todo mundo quer ser doutor..." Corei indignado e respondi com alguma lógica, que me era impossível romper com ela; se os fortes e aparentados, os relacionados para a formatura apelavam, como havia eu, mesquinho, semiaceito, de fazer exceção?" (p. 120)
Recordações do escrivão Isaías Caminha - 1917
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