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domingo, 21 de setembro de 2014

AUTORRETRATO FALADO

Venho de uma Cuiabá garimpo e ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha,
onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas
humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto como que desonrado e fujo para o
Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo
que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado.
Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

Manoel de Barros




sábado, 20 de setembro de 2014

11

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não me aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva, etc. etc.

Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Manoel de Barros



POEMA

A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.

Manoel de Barros


A HORA DA ESTRELA - OU - QUANTO AO FUTURO

"Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar. Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para nada. Sou gratuito e pago as contas de luz, gás, telefone."

Clarice Lispector, A Hora da Estrela (1998: 32)

"Pensando bem: quem não é um acaso na vida?"

(1998:36)

"Guardava disso segredo absoluto, o que lhe dava a força que um segredo dá."

(1998: 57)


Me repito

Ler Clarice Lispector é como um perdão.



Tratado da Mulher Comum [em elaboração]


É  a mulher pardal.
é a mulher capim.

A mulher comum sabe que "vencer", seja lá o que isso signifique, lhe faria pensar que é superior aos outros. Mas não. Ela é comum.

A mulher comum é boa. Quando, na rodoviária, conversa com a moradora de rua, percebe que são feitas da mesma carne, mesmo espírito, mesma sorte. Não. A sorte é diferente. Mas poderia não ser.

[A moradora de rua lhe conta que se lava com sabonete Johnson no latrina do banheiro da rodoviária; antes, lava a latrina com uma esponja de louça. Conta-lhe que, assim, fica bem limpinha.]

Quando a mulher comum chora, suas lágrimas são muito importantes.

Qualquer lampejo de criatividade que a mulher comum sinta, lhe traz ansiedades, nervoso, tremores.

A mulher comum vê a artista dançar na TV e sente inveja. A jornalista fala tão bonito.


[Digo mulher comum para corrigir uma antiga distorção histórica. Se você é homem e tem alguma capacidade para lidar com seu machismo, poderá se identificar].

Espelho I

"são para se ter medo, os espelhos"

Guimarães Rosa, Primeiras Estórias, "O espelho"