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sábado, 27 de dezembro de 2014

Tristes Trópicos - Como se faz um etnógrafo

"Nas letras e nas ciências, as profissões de praxe como magistério, pesquisa e algumas carreiras imprecisas, são de outra natureza. O estudante que as escolhe não se despede do universo infantil: antes, empenha-se em mantê-lo. Não é o magistério o único meio oferecido aos adultos que lhes possibilita permanecer na escola? O estudante de letras ou de ciências caracteriza-se por uma espécie de RECUSA que ele contrapõe às exigências  do grupo. Uma reação QUASE CONVENTUAL incita-o a retrair-se temporariamente ou de forma mais duradoura, no estudo, na preservação e na transmissão de um patrimônio, independente do tempo que passa; [...]. Desse ponto de vista, o ensino e a pesquisa não se confundem com a aprendizagem de uma profissão. São sua grandeza e sua desgraça constituírem, quer um REFÚGIO, quer uma MISSÃO."

[...]

Etnógrafo: "ele adquire uma espécie de DESARRAIGAMENTO CRÔNICO: nunca mais se sentirá em casa, em lugar nenhum, permanecerá psicologicamente mutilado."

(2005, P. 53).

Tristes Trópicos - A busca do poder

"Esta grande civilização ocidental, criadora das maravilhas de que desfrutamos, certamente não conseguiu produzi-las sem contrapartida. Como a sua obra mais famosa, amontoado onde se elaboram arquiteturas de uma complexidade desconhecida, a ordem e a harmonia do Ocidente exigem a eliminação de uma massa extraordinária de subprodutos nocivos que hoje infectam a terra. O que nos mostrais em primeiro lugar, viagens, é a nossa imundície atirada à face da humanidade"

[...]

"Diremos então que, por uma dupla inversão, nossos modernos Marcos Polos trazem dessas mesmas terras, desta vez na forma de fotografias, livros e relatos, as especiarias morais de que nossa sociedade experimenta uma necessidade mais aguda ao se sentir soçobrar no tédio?"

Lévi-Strauss
Tristes Trópicos, Cia das Letras, 2005, p. 35

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Doída

Sentada diante do computador
Sinto dor
Funda
que ataca minhas estruturas respiratórias e psíquicas, e me dão vontade de chorar.
Ah que pena
Que sinto de mim mesma.


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Cotidiano

"Todo dia eu só penso em poder parar
Meio-dia só penso em dizer não.
Depois penso na vida por levar.
E me calo com a boca de feijão."

Chico Buarque

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Richard Hoggart (1918-2014) - um coração sensível


            Richard Hoggart é reconhecido no Brasil por ser um dos fundadores dos Estudos Culturais. Juntamente com Raymond Williams e Edward Thompson, fundaram em 1964 o Centro Contemporâneo de Estudos Culturais (Centre for Contemporary Cultural Studies - CCCS), na Universidade de Birmingham, na Inglaterra. O centro tornou-se referência mundial, realizando pesquisas sobre cultura erudita, popular e massiva por meio de abordagens interdisciplinares que reuniram estudos literários, sociologia e antropologia. O Centro agregou outros intelectuais de peso como Paul Willis e Stuart Hall, cuja morte em 2014 foi bastante divulgada no Brasil.
Ao pesquisar a data de falecimento de Richard Hoggart na internet, qual não foi a minha surpresa ao descobrir que esse ilustre professor de literatura também faleceu recentemente?  Pois é, Richard Hoggart morreu aos 95 anos no dia 10 de abril de 2014, fato que passou praticamente despercebido.
Isso possivelmente se explica pela pouca presença de sua obra no Brasil. Apesar da multiplicação de disciplinas e cursos sobre Estudos Culturais em diferentes faculdades e cursos de pós-graduação – espaços nos quais Hoggart é sempre mencionado como um “fundador” – sua obra é muito pouco lida entre nós.
Salvo engano, seu único livro traduzido para o português é The Uses of Literacy (cujo original é de 1957), por uma editora portuguesa (Editorial Presença) em 1973, cujo título ficou As utilizações da cultura: aspectos da vida da classe trabalhadora, com especiais referências a publicações e divertimentos.
 Nessa obra, Hoggart analisa as transformações que ocorreram na cultura das classes proletárias inglesas a partir da introdução de publicações de massa, como livros, jornais, revistas e até canções. Contextualizado no pós-guerra, um dos destaques da obra é que a pesquisa é em grande parte orientada pelas próprias experiências de Hoggart, já que compartilhava dessa origem social, tendo passado sua infância em um bairro operário na cidade de Leeds, na Inglaterra.
Com descrições cuidadosas do cotidiano das famílias operárias pesquisadas, Hoggart analisa a importância do trabalho, do lar, do bairro e da vizinhança, aproximando-se de um olhar etnográfico. Por ter vivenciado muitas das experiências cotidianas que analisa, sua interpretação sobre a penetração das publicações de massa na cultura proletária inglesa é ao mesmo tempo crítica e compreensiva. Hoggart, por um lado, se lamenta pela qualidade dessas publicações – repletas de “lugares comuns” e linguagem estereotipada -, as quais estariam substituindo a cultura proletária por uma cultura de massas. Por outro lado, o autor reconhece que diante das dificuldades da vida, as emoções e valores já conhecidos, mesmo que simples, permanecem despertando sentimentos naqueles trabalhadores. São com as seguintes palavras que Hoggart, após analisar algumas canções românticas, conclui o livro:

Um “coração sensível” é talvez piegas e sentimental, mas não é coisa para desprezar. A maioria dessas canções, nas letras, nas melodias e na maneira como são cantadas, constituem a expressão de um “coração sensível”. Tocam velhas teclas, referem-se a valores que continuam a ser aceites. A vida lá fora, a vida da segunda-feira é muito dura: mas, “ao fim e ao cabo” são estes os verdadeiros sentimentos. As canções contribuem para alegrar e encorajar os seus ouvintes, e os sentimentos que exprimem permanecem ocultos num cantinho da memória, durante uma semana de trabalho muito terra a terra e da qual está ausente o sentimentalismo (Hoggart, 1973, p. 201)

Desse modo, The Uses of literacy resultou em uma obra sensível e pioneira.


Contudo, conforme Maria Elisa Cevasco chama a atenção no livro “Dez lições sobre os estudos culturais” (Boitempo Editorial, 2003) a obra de Hoggart não teve o mesmo fôlego teórico como de outros parceiros do Centro, Raymond Williams por exemplo. Ainda assim, trata-se de uma obra composta por mais de 15 livros, que debatem sobre mídias, educação e literatura, com inegável interesse para pesquisas na área dos estudos culturais.



Pelo menos 7 vidas

Quem me dera poder ter outras vidas,
ao invés de sujeitar-me a essa limitação medonha.

Em uma das minhas vidas, aos 60 anos, doaria toda a minha herança (que eu teria então, claro) aos moradores de rua que vivem perto da Estação da Luz e me mudaria poderosa para uma comunidade hippie no sul da Bahia, sambando na cara da sociedade.

Em outra vida, eu seria uma grande médica, talvez gastroenterologista. Engajada com ideais até meio antiquados de esquerda, eu teria no Che Guevara a minha grande inspiração, chocando meus pacientes de Moema com sua foto em pleno consultório decorado em tons pasteis.

Na terceira vida, eu seria um empresário de sucesso e exerceria todo o meu poder de líder e gestor. Desse modo (e não de outro), eu seria respeitado e amado e também muito odiado por todos os meus subordinados.

Já em outra vida, eu seria uma escritora decadente e escreveria tudo tudo tudo o que eu pensasse, inclusive como meu cotovelo pode ficar acinzentado minha unha sem corte meu sovaco peludo e como isso é importante para a humanidade, sim,o é. Amarga, me suicidaria ao final, em um rio, plagiando Virginia Woolf. Mas pensando bem, uma morte no Rio Pinheiros seria para lá de original, garantindo inclusive notinha de capa na Folha de São Paulo.

Na quinta vida eu casaria com um homem lindo, e usaria vestidos caríssimos, e provocaria inveja em todas as minhas colegas de escola ao protagonizar dezenas de capas de revista, sempre com a barriga malhada de fora. Eu seria brega, eu seria cafona, eu seria ridícula.

Numa outra vida.

Mas não.
Só tenho está.
Estas mãos.
Essas pequenas rugas já na testa.
Esses traumas e medos.
E um bocado de mediocridade.
Também um pouquinho de feliz, afinal.

Oh vida minha, minha única amada vida, seja! Já que não podemos ser outra.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Política

Entre a direita odiosa
E a esquerda revoltada
Fico num cantinho entre o centro e a esquerda
Desejando 
menos desigualdade social
menos preconceitos
mais educação
mais saúde
mais direitos
para todas as pessoas. 

Sim, aceito o sistema capitalista
Não, não o aceito do modo como está.
Quero reformas, mudanças, inclusões.  
Aproximo-me da maioria das pessoas, no entanto, ao estar dentro. Ao respeitar opiniões diversas. E ao pensar que as pessoas não podem ser tão estúpidas e alienadas assim. 

Por um lado, para o outro, sinto culpa
Encalacrada.


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Matéria de poesia

1.
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para poesia

[...]

As coisas jogadas fora
têm grande importância
- como um homem jogado fora

Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens de poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.

Manoel de Barros

Sabiá com trevas

IX.
O poema é antes de tudo um inutensílio.

Hora de iniciar algum
convém se vestir de roupa de trapo.

Há quem se jogue debaixo de carro
nos primeiros instantes.

Faz bem uma janela aberta
uma veia aberta.

Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema
enquanto vida houver.

Ninguém é pai de um poema sem morrer.

Manoel de Barros


quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Dor morninha

É ela sim.
Morninha.
Sem pé, sem cabeça, sem dinheiro para o psicanalista.
É confusa, tadinha.
É ingênua. É feminina.
É doméstica. É domesticada. É domesticável.
Essa dor.



Espera

Ler é, talvez,
a melhor forma de
esperar
coisa nenhuma.



quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Pecado Original

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém escrever,
A verdadeira história da Humanidade.

O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, é só o mundo;
O  que não há somos nós, e a verdade está aí.

Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.

Que é daquela nossa verdade - o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza - o propósito à mesa de depois?

Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sôbre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.

Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?

Quantos Césares fui!

Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão -
Meu Deus! meu Deus! meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!

Álvaro de Campos
7-12-1933

Trapo

O dia deu em chuvoso.
A manhã, contudo, esteve bastante azul.
O dia deu em chuvoso.
Desde manhã eu estava um pouco triste.

Antecipação! Tristeza? Coisa nenhuma?
Não sei: já ao acordar estava triste.
O dia deu em chuvoso.
Bem sei: a penumbra da chuva é elegante.
Bem sei: o sol oprime, por ser tão ordinário, um elegante.
Bem sei: ser suscetível às mudanças da luz não é elegante.
Mas quem disse ao sol ou aos outros que eu quero ser elegante?
Dêem-se o céu azul e o sol visível,
Névoa, chuva, escuros - isso eu tenho em mim.

Hoje quero só sossêgo.
Até amaria o lar, desde que não o tivesse.
Chego a ter sono de vontade de ter sossêgo.
Não exageremos!
Tenho efetivamente sono, sem explicação.
O dia deu em chuvoso.

Carinhos? Afetos? São memórias...
É preciso ser criança para os ter...
Minha madrugada perdida, meu céu azul verdadeiro!
O dia deu em chuvoso.

[...]

O dia deu em chuvoso.

Álvaro de Campos

10-9-1930

domingo, 21 de setembro de 2014

AUTORRETRATO FALADO

Venho de uma Cuiabá garimpo e ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda de bananas no Beco da Marinha,
onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do chão, pessoas
humildes, aves, árvores e rios.
Aprecio viver em lugares decadentes por gosto de estar entre pedras e lagartos.
Fazer o desprezível ser prezado é coisa que me apraz.
Já publiquei 10 livros de poesia; ao publicá-los me sinto como que desonrado e fujo para o
Pantanal onde sou abençoado a garças.
Me procurei a vida inteira e não me achei - pelo
que fui salvo.
Descobri que todos os caminhos levam à ignorância.
Não fui para a sarjeta porque herdei uma fazenda de gado.
Os bois me recriam.
Agora eu sou tão ocaso!
Estou na categoria de sofrer do moral, porque só
faço coisas inúteis.
No meu morrer tem uma dor de árvore.

Manoel de Barros




sábado, 20 de setembro de 2014

11

A maior riqueza do homem é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não me aceito.
Não aguento ser apenas um sujeito que abre
portas, que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde, que vai lá fora,
que aponta lápis, que vê a uva, etc. etc.

Perdoai.
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.

Manoel de Barros



POEMA

A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.

Manoel de Barros


A HORA DA ESTRELA - OU - QUANTO AO FUTURO

"Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar. Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para nada. Sou gratuito e pago as contas de luz, gás, telefone."

Clarice Lispector, A Hora da Estrela (1998: 32)

"Pensando bem: quem não é um acaso na vida?"

(1998:36)

"Guardava disso segredo absoluto, o que lhe dava a força que um segredo dá."

(1998: 57)


Me repito

Ler Clarice Lispector é como um perdão.



Tratado da Mulher Comum [em elaboração]


É  a mulher pardal.
é a mulher capim.

A mulher comum sabe que "vencer", seja lá o que isso signifique, lhe faria pensar que é superior aos outros. Mas não. Ela é comum.

A mulher comum é boa. Quando, na rodoviária, conversa com a moradora de rua, percebe que são feitas da mesma carne, mesmo espírito, mesma sorte. Não. A sorte é diferente. Mas poderia não ser.

[A moradora de rua lhe conta que se lava com sabonete Johnson no latrina do banheiro da rodoviária; antes, lava a latrina com uma esponja de louça. Conta-lhe que, assim, fica bem limpinha.]

Quando a mulher comum chora, suas lágrimas são muito importantes.

Qualquer lampejo de criatividade que a mulher comum sinta, lhe traz ansiedades, nervoso, tremores.

A mulher comum vê a artista dançar na TV e sente inveja. A jornalista fala tão bonito.


[Digo mulher comum para corrigir uma antiga distorção histórica. Se você é homem e tem alguma capacidade para lidar com seu machismo, poderá se identificar].

Espelho I

"são para se ter medo, os espelhos"

Guimarães Rosa, Primeiras Estórias, "O espelho"



terça-feira, 26 de agosto de 2014

Pane

Relativismo
O pai
A prova
Evangelismo
Política
Disciplina
(Falta de) Desejo
O filho
O trabalho
Dinheiro
Mundo tradicional
Mundo moderno
Indivíduo
Indivídua
Tempo
Inteligência
Erudição
Mediocridade
Eu
O outro
É você se olhar no espelho, se sentir um grandíssimo idiota, saber que é humano, ridículo, limitado, que só usa dez por cento de sua cabeça animal.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Certa vez

                                                 Para Roberta

Vez por outra
ela busca
a garota
de outrora

vez por outra
assim
de mim
vai embora.

Outra vez
graças a Deus
ela volta.

Retorna
fortalecida.

Com um segredo:

novamente
a vida
tem vez
nela.

Cada vez,
mulher crescida, 
se encontra 
mais bela.


sexta-feira, 27 de junho de 2014

[trecho de] Tabacaria

[...]
    Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
    Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
    À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
    E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

    Falhei em tudo.
    Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
    A aprendizagem que me deram,
    Desci dela pela janela das traseiras da casa.
    Fui até ao campo com grandes propósitos.
    Mas lá encontrei só ervas e árvores,
    E quando havia gente era igual à outra.
    Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
[...]

Álvaro de Campos
15 de janeiro de 1928

Ralo

água, transparente,

elétrico, chuveiro,

enchendo o cérebro, e penso: poesia é modo de, alerta, tudo aceso, tudo ligado-desligado, estando só.

as costas oleosas, a mão já seca de tanto sabão

é segredo.



sexta-feira, 6 de junho de 2014

Céu

A criança olha
Para o céu azul.
Levanta a mãozinha,
quer tocar o céu.

Não sente a criança
Que o céu é ilusão:
crê que não o alcança,
Quando o tem na mão.

Manuel Bandeira - Belo Belo

Belo Belo

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo - que foi? passou - de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo da noite.

Belo belo belo
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra dá só com trabalho.

Ás  dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

- Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.

Manuel Bandeira - Lira dos Cinquent'anos


Trecho de "Na Rua Mário de Andrade"

[...]

Ele, Mário, me diz: é preciso
flanar...
Eu digo a ele - ó Mário,
era o que eu ia te falar

É preciso flanar em ruas
- os passos levando sempre
para nenhum lugar

E Mário me diz: - Poeta,
nenhum-lugar é o melhor
lugar de um poeta chegar

[...]

Manoel de Barros

José (Drummond)

E agora, José?
A festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora José?

[...]

Se você gritasse,
se você gemesse,
se você tocasse
a valsa vienense,
se você dormisse,
se você cansasse,
se você morresse...
Mas você não morre,
você é duro, José!

Sozinho no escuro
qual bicho-do-mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha, José!
José, para onde?

Decoro

Eles a querem.
Ela, decente, sorri.
Quanta decência.
Como ela é decente.
 que ainda está em jogo.
o jogo.
ridículo
- é o único que ela tem -
mas ela gosta, é boazinha, é indecente, sabe se comportar.




domingo, 4 de maio de 2014

Destino

então era isso, deus?
quem joga os dados.
então não éramos dois.
finda a dúvida
e não há mais pra  depois.

sexta-feira, 28 de março de 2014

Noite de Natal

Noite de Natal.
Estou bonita que é um desperdício.
Não sinto nada
Não sinto nada, mamãe
Esqueci
Menti de dia
Antigamente eu sabia escrever
Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída
com desvelo técnico.
Freud e eu brigamos muito.
Irene no céu desmente: deixou de
trepar aos 45 anos
Entretanto sou moça
estreando um bico fino que anda feio,
pisa mais que deve,
me leva indesejável pra perto das
botas pretas
pudera

Ana Cristina César

segunda-feira, 24 de março de 2014

Vida alheia

Edu-dudu-ardo
O conheci na esquina
Sem uma perna, os braços no lugar, a cabeça grande e o coração quase caindo.
Morreu sem ter morrido
E ressuscitou.
Com a ajuda de amigos.
Agora, quem saberá ao certo, foi acolhido por anjos
Franciscanos, com pombas nos ombros e coroas na cabeça.
Desde já, agradeço.



Obra de arte

O principal problema do poeta
é acreditar que suas emoções são tão importantes.

Silêncio!
Temos que ouvir as emoções do poeta.



segunda-feira, 10 de março de 2014

Recuperação da Adolescência

é sempre mais difícil
ancorar um navio no espaço

(Ana Cristina César)